domingo, 2 de novembro de 2008

Lampião no contexto do cangaço


Sete décadas da morte do Rei do Cangaço, Maria Bonita e mais nove companheiros, ocorrida na manhã de 28 de julho de 1938, numa emboscada que ficou conhecida como o “Massacre de Angico”, em Poço Redondo-SE. Chega ao fim a trajetória do mais popular cangaceiro do Brasil. Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Por sua inteligência e destreza, Lampião até hoje é considerado o Rei do Cangaço. No sertão castigado por secas prolongadas e marcado por desigualdades sociais, a figura do coronel representava o poder e a lei. Criava-se desta forma um quadro de injustiças que favorecia o banditismo social. Pequenos bandos armados, chamados cangaceiros, insurgiam-se contra o poder vigente e espalhavam violência na região.
Eram freqüentes, também, os atritos entre famílias tradicionais devido às questões da posse das terras, às invasões de animais e às brigas pelo comando político da região. Num desses confrontos, o pai de Lampião foi assassinado. Para vingar a morte do pai, entre outros motivos, Lampião entra para o cangaço.
O cangaço - movimento constituído de várias nuances no tempo e no espaço – teve suas primeiras manifestações na década de 1830, com grupos espontâneos que agiam no meio rural, instrumentalizados para resolver disputas políticas entre os potentados locais ou pela propriedade da terra. O cangaço sempre foi caronista dos momentos de crises políticas e sociais ocorridas em várias etapas da História do Brasil. O auge das suas ações e da organização cangaceirista se deu nas três primeiras décadas do século XX, sobretudo com o surgimento de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, a partir de 1918. Na verdade, o Cangaço é um sintoma da luta de classe que se processava no Nordeste. Entretanto, o cangaceiro não tinha consciência social e o Cangaço acabava sendo simplesmente uma reação à miséria que não se resolvia de forma racional e sim, pela violência. Para entendermos bem tudo isso, é preciso acompanhar como atuavam os cangaceiros, e, principalmente, o grupo de Lampião, de quem se tem mais informação. O desenrolar da história do cangaço, tem raízes fortes na questão social e na disputa por um espaço de chão, fatores que influenciaram, indiscutivelmente, no surgimento das revoltas populares, de grupos e líderes que buscavam maneiras de estabelecer um poder paralelo, em contraponto ao governo constituído, que não cumpria seu papel de manter a estabilidade e, principalmente, a justiça social. O sertão do nordeste brasileiro tem sofrido poucas alterações ao longo do tempo, tanto no aspecto climático quanto no social. Desde a segunda metade do século passado até o começo deste, a contestação à pobreza e às péssimas condições de vida tem rendido movimentos populares e muitas dores de cabeça para os donos do poder local e para a administração oficial. Várias rebeliões aconteceram, causadas pela exploração da mão-de-obra do sertanejo desalojado de suas terras pela seca e pelos grandes latifundiários, além de submetido a regimes de trabalho praticamente escravo. Essas rebeliões disseminaram-se pelo agreste, alimentadas pelo número cada vez maior de flagelados. Sem outras alternativas e sabendo que esse estado de coisas seria uma constante, os grupos de rebeldes procuraram em si mesmos os meios para tentar mudanças, instigados pelo analfabetismo, pela fome, pela falta de futuro melhor, pelos anos sucessivos de seca, pela falta de vontade política.
O sertão é, por natureza, adverso ao homem que ali tenta viver. O sertanejo nordestino e sua terra eram e continuam sendo um só todo. Tirar a terra do sertanejo é matá-lo. Tirar o sertanejo da terra é condená-lo a uma existência tão diferente do que lhe é próprio e natural que chega a ser irreal.
As causas do surgimento do cangaço foram de natureza variada. A pobreza, a falta de esperanças e a revolta não foram as únicas. Isso é mais que certo. Mas foram estas circunstâncias as mais importantes para que começassem a surgir os cangaceiros. Muitos, como dissemos, eram pequenos proprietários, mas mesmo assim tinham que se sujeitar aos coronéis. Do meio do povo sertanejo rude e maltratado surgiram os cangaceiros, convictos de que lutavam pela sobrevivência.
Lampião, ao contrário do que muita gente pensa, não foi o primeiro cangaceiro, mas foi, praticamente, o último. Sem dúvida nenhuma, foi o mais importante e o mais famoso de todos. Seu nome e seus feitos chegaram a todos os recantos de nosso país. Praticam assassinatos por vingança ou por encomenda. Pela fama que alcança, Lampião torna-se o "inimigo número um" da polícia nordestina. Muitas são as recompensas oferecidas pelo governo para quem o capture. Mas as tropas oficiais sempre sofrem derrotas quando enfrentam seu bando.
Em 1930, há o ingresso das mulheres no bando. E Maria Déia, a Maria Bonita, torna-se a grande companheira de Lampião. Esta "aristocracia cangaceira" , como define Lampião, tem suas regras, sua cultura e sua moda. As roupas, inspiradas em heróis e guerreiros, bem ao estilo de Napoleão Bonaparte, são desenhadas e confeccionadas pelo próprio Lampião. Os chapéus, as botas, as cartucheiras, os ornamentos em ouro e prata, mostram sua habilidade como artesão.
Após dezoito anos, a polícia finalmente consegue pegar o maior dos cangaceiros. Na madrugada do dia 28 de julho de 1938, a Volante do tenente João Bezerra, numa emboscada feita na Grota do Angico, em Sergipe, mata Lampião, Maria Bonita e parte de seu bando. Suas cabeças são cortadas e expostas em praça pública. Lampião e o cangaço tornaram-se nacionalmente conhecidos. Seus feitos têm sido freqüentemente temas de romancistas, poetas, historiadores e cineastas, e fonte de inspiração para as manifestações da cultura popular, principalmente a literatura de cordel. O caminho que Lampião traçou nas sendas da Bahia, Sergipe, Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, hoje claramente observado nos mapas e na memória viva da história do cangaço, praticamente não foi alterado nos últimos 60 anos.
Onde lutou Lampião, nos dias de hoje ainda estão as sobras da subserviência, a presença maciça da ignorância, a exploração dos pequenos e dos humildes. E, de forma geral, também a indiferença nacional continua a mesma. Até a imagem física das localidades permanece quase a mesma do século passado. Quase nada mudou desde os tempos em que Lampião decidiu que não seria mais o trabalhador Virgulino Ferreira.

Lygia Prudente

5 comentários:

André Setaro disse...

Excelente este artigo sobre Lampião no contexto do cangaço. Tenho um amigo, cineasta, que nasceu em Sergipe (em Boquim, acho), José Umberto, que tem Lampião como um mito, um homem a ser louvado. Por outro lado, minha mãe, que morou sua infância e juventude em Ilhéus, dizia que quando se anunciava a chegada de Lampião, todos ficavam assustados e com medo e não saiam de casa. Para Umberto, homem de cinema, escritor premiado, Lampião é um herói. Para minha mãe, um grande bandido, para não dizer um facínora. De qualquer forma, é dialético.

Daniel Savio disse...

É bem interessante o artigo sobre o Lampião, é engraçado que para cada pessoa, o que ele representa é diferente, indo de herói a bandido.

Fiquem com Deus, Lygia e Armando.
Um abraço.

Jornalista Grace Melo disse...

Repito as palavras dos comentários acima. Minha mãe tem hoje 84 anos, era criança quando anunciou-se a passagem do cangaceiro na cidade de Neópolis. Ela não esquece do medo terrível que diz ter sentido, todos trancaram-se em casa e se esconderam embaixo da cama. Normalmente a sociedade marginaliza a rebeldia, a luta contra a desigualdade. Adorei o artigo.

Cris Medeiros disse...

Muito bom seu artigo! Assim com no caso do Andre que comentou acima, minha vó era daquela região e tinha muito medo quando anunciavam a chegada de Lampião!

Obrigada pela visita e pelo carinho!

Beijocas

tesco disse...

Como bem foi dito "os cangaceiros... espalhavam violência na região". Que a população sofria os governantes e os 'coronéis' não resta dúvida, mas que os cangaceiros faziam alguma coisa em benefício da população, é romantismo bobo. O que faziam era exartamente isso, espalhar a violência por todo o Nordeste, para que ninguém ficasse sem seu quinhão de violência. _ Beijos.